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terça-feira, 6 de março de 2012

ENTRE A CRUZ E O CAPITAL: A TEOLOGIA CAPITALISTA E O ESPÍRITO DO NEOPENTECOSTALISMO

Essa consciência da graça divina por parte dos eleitos e dos santos é acompanhada de uma atitude para o pecado do próximo, não de compreensão simpática baseada na consciência das próprias fraquezas, mas de ódio e de desprezo por ele, por considerá-lo inimigo de Deus e portador dos sinais da condenação eterna.
Max Weber – A ética protestante e o Espírito do Capitalismo
           


Após a leitura do texto O que a esquerda deveria aprender com osevangélicos, fiquei meditando o quanto a realidade de mais de 20% de evangélicos no Brasil ainda é desconhecida pela intelectualidade brasileira. Seria possível constituir uma ética pentecostal na linha teórica da ética protestante feita por Max Weber? Ou as relações entre a cultura capitalista e a fé, seja na religião, na ciência ou qualquer outra crença, estão fundidas de modo que não seja mais possível distinguir uma de outra? O autor do texto vê a presença das religiões evangélicas nas classes mais populares um exemplo a ser seguido pela esquerda. Tenho de concordar que, diferentemente dos religiosos, a maior parte dos partidos de esquerda tem preferência aos intelectuais, universitários e classe média. A exceção só é feita àqueles que acabam tendo maior popularidade em seus bairros, sindicatos, movimentos sociais e, por isso, tornam-se capital político importante para seus partidos. Mas daí achar que impera uma cultura democrática nas igrejas, de modo que as participações ativas independem das diferenças socioculturais de seus fiéis, é mostrar total falta de conhecimento da realidade evangélica.
           

Não pretendo me aprofundar nessas diferenças até porque acho que deveria ser tema de pesquisa para quem trabalha com Ciências da Religião: a importância de reconhecer os tratamentos diferenciados nas igrejas pentecostais é ressaltar que as igrejas – por mais local ou periférica – também se estruturam nas relações de poder. Os códigos podem ser outros, os valores que determinam essas relações também, mas a estrutura é a mesma. É a meritocracia religiosa que impera nas igrejas.
            Concordo com o autor ao ressaltar o caráter comunitário que as igrejas ainda preservam e que contribuem para que pessoas em condições de exclusão social recorram a elas em busca de sentir-se pertencer. Mas o preço que pagam é, muitas vezes, altíssimo. Um jovem homossexual terá de se confessar hétero, uma mãe solteira precisará, com a benção de Deus, encontrar um marido, um desempregado terá de abrir mão do convívio familiar não cristão – ou pelo menos reduzi-lo – para ter aceitação plena no templo. A mesma mão que salva é a que condena, a mesma palavra que cura é a que fere, a mesma boca que abençoa é a que amaldiçoa. Há um movimento cíclico que, só não coloca em crise a instituição religiosa, por conta do adágio muito comum entre os pentecostais: estamos na igreja para servir a Jesus e não ao homem. O que dá certo é atribuído como ação divina, o que dá errado é ação humana ou diabólica.
            Os pentecostais sempre acreditaram que o mundo pertence ao maligno e vivem a almejar a vida pós-morte – embora tenham medo e sofram com a morte. Resulta dessa crença uma postura apolítica. A crença de que o reino de Jesus não é deste mundo e a vivência cruel da corrupção política e do descaso dos governos às classes mais pobres os fazem votar apenas por obrigação. O recente avanço de lideranças religiosas, sobretudo no legislativo, resulta do que Jeffrey Weeks chama de pânico social. O pânico social foi utilizado desde 1980 por líderes evangélicos e católicos contra o PT e volta novamente a ser usado para impedir a garantia dos direitos civis à população LGBT, o projeto lei que descriminaliza o aborto, como também para atacar as religiões de matrizes afro. Os políticos evangélicos viram nessas pautas a oportunidade de se legitimarem politicamente entre evangélicos e conseguirem disputar eleições. Passaram a fazer campanhas acirradas contra esses movimentos sociais e manipular os pentecostais a apoiarem suas candidaturas na luta contra o “mal” que assola o país.
            Esse pânico social é efeito de uma teologia moderna que chamo de teologia hollywoodiana. A teologia pentecostal, que nunca teve estabilidade, tornou-se refém dos arquétipos cinematográficos hollywoodianos, os quais consistem em confirmar a crença na individualidade, nas relações bélicas e no binarismo entre bem e mal. Essa intriga basicamente se organiza por um sujeito que se torna herói (o crente) por decisão de um destinador (Deus). Esse herói precisa alcançar algo determinado pelo destinador (salvar almas), mas, para isso, terá de enfrentar um obstáculo (forças do mal) provocado pelo anti-herói (diabo). Caso consiga enfrentar esse obstáculo alcançará o objeto e será premiado pelo destinador (galardão). Desse modo, a vida cotidiana é sempre vista pelo prisma da batalha espiritual. Assim, se o obstáculo e o anti-herói forem externos a comunidade (direitos LGBT, legalização do aborto, terreiros de candomblé, etc.), o herói é o sujeito coletivo, podendo ser tanto a igreja local, como a comunidade evangélica nacional, de modo que há uma união entre os evangélicos quando esses arquétipos coletivos são acionados. Em tempos de guerra, as diferenças individuais e locais se apagam a favor de uma unidade nacional. Contudo, no dia-a-dia, o obstáculo e o anti-herói pode se personificar nas pessoas da própria igreja – a irmã do círculo de oração que quer o cargo de regente, o pastor que quer se tornar líder da comunidade, o irmão que quer ser professor de escola dominical, a jovem que quer cantar melhor que as outras. Para animar a festa, há os oráculos que são a mensagem do pregador, a profecia da irmã ungida ou os hinos de unção que sempre se “renovam”, mas nunca mudam a letra, os quais acionam a cultura bélica entre os fiéis. Essa comunidade democrática vista pelo autor é, na realidade, um verdadeiro inferno de guerra entre egos, de irmãs e irmãos se odiando no amor de Cristo, de uma chuva de profecias alimentando egos e de um comércio capitalista fortíssimo que dá rios de dinheiro a cantores gospel. O neopentecostalismo se insere nesse contexto ao fazer acreditar que para vencer o inimigo  – aluguel, falta de emprego, bebedeira na família, pobreza – e alcançar a salvação, o herói deve doar seus bens à igreja.
            Obviamente, esses arquétipos que determinam a teologia hollywoodiana não estão presentes apenas nas igrejas pentecostais. Esses arquétipos podem ser identificados no catolicismo carismático, em igrejas protestantes históricas, na sociedade em geral e, inclusive, em diversos grupos e partidos de esquerda. É a teologia capitalista que tem nos educado a vivermos constantemente em guerra, fazendo com que o diferente seja visto como inimigo. Somos pessoas tristes empunhando armas e matando indistintamente quem aparece em nossa frente, porque, afinal, nos achamos especiais e acreditamos destinados a cumprir uma missão. Quando os arquétipos coletivos são acionados pelo pânico social, renovam os afetos locais e aliviam, por um momento, esse inferno cotidiano chamado igreja, partido, universidade, grupo de torcida, movimento social, etc. Guerra, seres especiais e missões impossíveis são arquétipos básicos que determinam qualquer enredo de filmes hollywoodianos.
            Discursos arraigados no conceito de verdade como vem sendo feito o discurso pelo Estado Laico não tem efeito nenhum para combater a teologia capitalista. É necessário um processo de desconstrução desses valores. É preciso que coloquemos no banco dos réus a verdade. É preciso desmistificar a sociedade para que possamos construir outra cultura, outro modo de vida pautada nos Direitos Humanos, na comunidade e na fraternidade. Dentro do pensamento teológico, a teologia feminista, a teologia da libertação e a teologia inclusiva apontam para essa possibilidade. Acredito ser mais sadio para toda sociedade que essas teologias sirvam de exemplo na teoria e na prática para a esquerda, para os evangélicos e para toda sociedade.

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